Andarilhos virtuais...

27 de abril de 2008

Sonho Lendário II

Acordei assustada com o barulho do despertador. Por alguns minutos, refleti sobre esse sonho tão maluco. Eu ainda conseguia ouvir a voz de Zeus e tremia só de lembrar daqueles olhos tão expressivos. Tentei levantar da cama, mas meu corpo estava muito cansado.
Fechei os olhos novamente e, mais uma vez, peguei no sono. Fui voando para o Monte Olimpo. Meu corpo era leve como plumas flutuantes. O pôr-do-sol, na morada dos deuses, era magnífico. Lá estava eu, de novo, me preparando para bater na porta de nuvem. Mas antes disso acontecer, as deusas Estações abriram a porta para se despedir dos deuses. Fiquei triste, pois eu sabia que, sempre no final do dia, os imortais iam embora para suas casas. Alguns moravam na Terra, nas águas ou embaixo do mundo. Acabei desistindo de ir até o palácio. Então, fui caminhar num bosque desconhecido. Desci por uma gruta situada ao lado do promontório de Tenaro e cheguei ao reino do Estige. Esse lugar me recorda um livro muito conhecido, “O nome da rosa”, de Umberto Eco, onde vários assassinatos aconteciam em um mosteiro sombrio e medonho.
Claro que no reino do Estige não havia assassinato, pois a multidão que eu acabara de ver era das trevas. Ou seja, todos eles já estavam mortos. Inúmeros fantasmas vieram me perguntar sobre a vida de várias pessoas que moram na Terra. Mas um espectro, acuado em um canto escuro, me chamou atenção. Reparei que ele possuía um broche com um símbolo nazista.
Homero passou as mãos frias em meus cabelos e sussurrou no meu ouvido dizendo que, aquele no canto, era o Hitler. Nunca pensei em encontrar Hitler no reino de Hades, pois ele sempre afirmava que, quando morresse, iria para o palácio de Valhala. No entanto, só os corajosos guerreiros, mortos em combate, são escolhidos por Odin - na mitologia Nórdica, significa senhor da magia e deus da sabedoria - e, quando selecionados, podem desfrutar dos festins, das bebidas de hidromel, fornecida pela cabra Heidrum e da carne do javali Schrinnir. Pelo jeito, Hitler não teve escolha ou, por assim dizer, não foi escolhido por Odin.
Depois que passei pela multidão de almas, apresentei-me diante do trono de Hades (Plutão) e Prosérpina (Perséfone). Eles fizeram um gesto imperceptível com a cabeça, logo percebi que os deuses estavam hipnotizados com a música de Orfeu. O som da sua lira encantava diversos seres, que se reuniam em torno dele em transe. Nesse momento, todos os fantasmas choraram, o abutre parou de despedaçar o fígado de Prometeu, as filhas de Danaus descansaram do trabalho de carregar água, as faces das Fúrias se umedeceram, Argos fechou seus cem olhos, Sísifo sentou-se em seu rochedo para ouvir a melodia e eu adormeci no meu próprio sonho...

22 de abril de 2008

Sonho Lendário I

Sonhei com um palácio gigantesco. Ele ficava bem no topo do Monte Olimpo. Bati em uma porta de nuvem e várias deusas chamadas de Estações me desejaram boas vindas. Bem no centro do salão, sentado em seu trono, eu vi o rei Zeus. Ele acenava e convidou-me para participar do banquete. Naquele instante, eu era imortal e digna de poderes divinos.
A deusa Hebe, veio sorridente em minha direção e fez um gesto com a bandeja, que continha néctar. Talvez, por curiosidade ou sede, tomei toda a bebida. Sem dúvida, o líquido adocicado era de ótima qualidade. É claro que não deixei de experimentar todas as iguarias.
Os deuses me olhavam torto - devia ser por causa da minha roupa, pois eu estava usando uma calça jeans, a blusa era um pouco decotada e a sandália rosa pink. Percebi que a deusa Minerva me observava e logo fez um gesto com as mãos. Já sabia que ela queria conversar, então, levantei e fui saltitante ao seu encontro.
No entanto, não gostei da crítica que ela fez da minha roupa. Mas, de imediato, compreendi que a deusa estilista confeccionava túnicas e diversas peças dos vestuários de quase todas as deusas.
Deixei ela à vontade e, em questão de segundos, eu estava com uma roupa de seda novinha. Minerva ainda questionava sobre meu modelito, dizendo que o pano do vestido que eu usava era verde com detalhes dourados. Logo essas cores não combinavam com a minha sandália rosa pink. Pensei que ficaria descalça, mas ela me apresentou o Vulcano (Hefesto). O deus aparentava seriedade e era conhecido pelas seguintes profissões: arquiteto, ferreiro, armeiro, construtor de carros, artista de todas as obras do Olimpo e, o principal, ele fazia sandálias de ouro.
As sandálias eram mágicas, ou seja, os imortais poderiam caminhar tranquilamente sobre a água ou ar e se mover de um lado para o outro, com a velocidade do vento ou a força do inconsciente.
Achei estranho caminhar com aquelas sandálias. A Minerva batia palmas de tanta alegria e admiração. Eu me achei feia, mas, por enquanto, deveria me adequar àquela cultura. Voltei para o salão e ouvi a triste história do Rei.
Zeus, pai dos deuses e dos homens, possuía uma expressão serena que brilhava como um poder cósmico. Porém, ele teve uma vida difícil. Seu pai, Saturno (Cronos), e sua mãe, Réia (Ops), pertenciam à raça dos Titãs e surgiram do caos. Saturno era um monstro que devorava os próprios filhos. No entanto, Zeus foi o único que fugiu desse destino.
Já crescido, procurou a deusa Métis (Prudência), cujo poderes medicinais fizeram Saturno vomitar os irmãos de Zeus.
Um sorriso enigmático brotou no canto da boca do Rei. Percebi que ele me olhava esquisito. Bom, eu já tinha lido sobre a sua fama de sedutor e conhecia também a ira e o ciúme possessivo de Hera (Juno). Ainda bem que a deusa não percebeu aquela troca de olhares furtivos...


3 de abril de 2008

Circe, a malvada



Tela: Wright Barker

Circe, a célebre bruxa, desempenha um papel importantíssimo no livro de Homero (Odisséia). A história narra a viagem e as dificuldades que Odisseu (Ulisses) enfrentou antes de regressar para sua ilha Ítaca. E uma de suas paradas foi no palácio da feiticeira Circe, filha do sol.
Sob comando de Ulisses, seus companheiros foram em busca de hospitalidade. Nas redondezas do palácio encontraram diversos animais que, por natureza, deveriam ser selvagens. Mas os leões, tigres e lobos eram tão mansos que pareciam gatinhos indefesos. Não dando importância aos “bichinhos”, os companheiros do herói entraram no palácio. A deusa serviu a todos com bebidas e iguarias. Detalhe: a tripulação de Ulisses não sabia que Circe era feiticeira e tomou um licor encantado. Os corajosos aventureiros foram transformados em porcos. Eurícolo conseguiu fugir da armadilha. Apressou-se em voltar para o navio e relatou aquilo que vira. Ulisses dirigiu-se até o palácio e convenceu a bruxa para que desfizesse todo o feitiço. Logo, o herói trouxe seus soldados de volta para os navios sãos e salvos.
Essa foi à história narrada por Homero, mas o pensador La Fontaine conta uma versão totalmente diferente. Ou seja, através de suas fábulas, o escritor tomou como tema a mitologia clássica e reconstruiu, de modo reiventivo, muitas dessas lendas. E uma delas diz respeito aos companheiros de Ulisses (lenda já citada acima). A diferença é que seus amigos foram metamorfoseados em ursos, leões e lobos. Porém, eles se recusaram voltar à espécie antiga. A explicação de um dos homens que fora transformado em rei das selvas foi a seguinte:

“Perder garras e juba?
Posso com estas presas
A postas reduzir
A quantos temerários
Me ousarem agredir.
Rei sou – voltando a homem,
Também volto a soldado.
Para ser simples vassalo,
Não vão me mudar de estado.”

Ulisses ficou perplexo, mas não desistiu das perguntas. Dirigiu-se ao urso e tentou convencê-lo a voltar sua forma anterior. O urso respondeu irritado:

“Não vês que sou urso!?
Eu tenho o feitio que Deus dar-me quis,
Quem acha dos homens mais bela a figura?
Quem é que da nossa te arvora em juiz?
Oh! Deixe-me; vai-te; prossegue o teu rumo.
Se – sob este aspecto – não gostas de mim
Eu vivo contente, sou livre e não sinto
Tirar-me o sossego, pensão, nem cuidado;
Rejeito a proposta; não mudo de estado.”

Sua última pergunta foi para o lobo. Pediu para que abandonasse a floresta e se despisse da pele nojenta. O lobo respondeu uivando:

“Ai, que vai torta!
Já se viu maçada igual!
Quem és tu, que ousas tratar-me
De carnívoro animal?
Quem deste modo me increpa
Pouparia as ovelhinhas?
Se eu homem fosse, as poupara,
Menos, que as feras daninhas?
Por uma palavra, às vezes,
Não vos matais mutuamente,
Fazendo o papel de lobos,
Perdendo os foros de gente?
Eu penso, por fim de contas,
Que, malvado por malvado,
Melhor é lobo, que gente
Não quero mudar de estado.”

Assim, como na mitologia clássica, o fantástico mundo das fábulas também traz várias lições de moral. Ulisses termina a história frustrado por não ter trazido seus amigos de volta para o estado físico original. Então, ele deixa uma mensagem interessante:

“Torna-se em homens,
Quem diz? Não querem,
Ser sempre fera
Todos preferem
Matar a fome
Seguir o instinto
Vagar das selvas
No labirinto;
Eis as delícias
Da estulta grei
Surda a incentivos
Rebeldia à lei
Julgam ser livres
Nas solidões
Cevando, as soltas,
Brutais paixões.
Curto bestunto
De bichos bravos!
Dos próprios vícios
São mais que escravos.

As fábulas contêm milhares de ensinamentos. Através delas você identifica a cobiça, vaidade, preguiça, mesquinhez, avareza e a corrupção. La Fontaine usa os bichos como protagonistas em seus textos morais.
Na visão satírica do pensador francês, a mensagem deixada pelos companheiros de Ulisses foi que, para eles, é melhor ser bicho. Isso porque os aventureiros temiam perder a força animal que adquiriram com a transformação.
Os soldados sonhavam com a liberdade. Ou seja, sendo senhores da floresta não precisavam mais de se preocupar em pagar pensão, trabalhar ou voltar a ser vassalos.