Esse é o pesadelo vivenciado pela ninfa Eco, cuja maldição terrível transformou sua vida numa tristeza sem fim. As carnes do seu corpo se definharam e desapareceram inteiramente. Os ossos viraram rochedos e a única coisa que restou foi a voz. Antes da maldição, todos os deuses e mortais eram contagiados com sua energia festiva e encantadora.
Mas num belo dia Eco despertou ira e ódio de Hera (Juno), rainha dos deuses. Tudo porque a deusa ciumenta procurava exaustivamente seu promíscuo marido - Zeus (Júpiter) - que, escondido, se divertia com as jovens ninfas.
Porém, Eco tentou salvar a pele de Zeus e deteve a deusa possessiva com sua conversa, até que as amantes fugissem para algum lugar seguro. Hera, inconformada com a trapaça, amaldiçoou impiedosamente a tagarela ninfa. E disse que a partir daquele momento ela só repetiria a última palavra que seus ouvidos escutassem.
A ninfa caminhava pelo bosque se sentindo mutilada e, quando viu passar o belo Narciso, logo compreendeu que morreria se não conquistasse seu amor. A partir daquele instante ela precisava, ao menos, vê-lo todos os dias. Era um amor platônico, irrealizado e impossível. Mas ela insistia e sonhava que, em algum momento, eles poderiam se juntar e ter uma vida feliz. No entanto, Narciso foi cruel e desprezou a pobre ninfa. Então, Eco ocultou sua dor na solidão dos penhascos e montanhas, nas cavernas e bosques, no escuro profundo das florestas e fazendas.
Os dias foram passando e Narciso não dava a mínima para o amor verdadeiro de Eco. Várias ninfas que também se apaixonaram e foram rejeitadas por ele desejaram que os deuses o punisse. A furiosa ninfa castigou completamente Narciso, fazendo ele sentir o gostinho da ânsia de uma paixão não correspondida. Assim, Narciso inicia um louco amor por si mesmo.
Certo dia, cansado e com sede depois da caça, ele curvou-se sobre a fonte para beber. Mas se surpreendeu ao ver, através da água, aqueles olhos que encontravam aos seus. Ele sorria e os lábios correspondiam e se entreabriam noutro sorriso. Ele erguia os braços e a imagem repetia o gesto. Por fim, o presunçoso deus tentou agarrar e beijar aquela incrível criatura. Mas foi tudo em vão, pois aquele ser era seu próprio reflexo. E assim, depois de vários dias sem comer e dormir, sua alma mergulhou para o reino de Plutão – deus dos mortos. As ninfas vingativas procuraram em todos os cantos o odioso corpo – prepararam até uma pira funerária com suas próprias mãos. Antes que isso acontecesse, o deus do Olimpo transformou o belo jovem numa flor branca, do qual recebeu o nome de Narciso.
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Muitas vezes relembro aquele dia
Em que fui despertada a vez primeira
Do meu sono profundo. Sob as folhas
E as flores, muitas vezes meditei: Quem era eu? Aonde ia? De onde vinha?
Não distante de mim, doce ruído
De água corrente vinha. De uma gruta
Saía a linfa e logo se espalhava
Em líquida planície, tão tranqüila
Que outro céu tranqüilo parecia.
Com o espírito incerto caminhei e fui
Na verde margem repousar do lago
E contemplar de perto as claras águas
Que eram, aos meus olhos, novo firmamento.
Ao debruçar-me sobre o lago, um vulto
Bem em frente de mim apareceu
Curvado para olhar-me. Recuei
E a imagem recuou, por sua vez.
Deleitada, porém, como que avistava
Novamente eu olhei. Também a imagem
Dentro das águas para mim olhou,
Tão deleitada quanto eu, ao ver-me.
Fascinada, prendi na imagem os olhos
E, dominada por um vão desejo,
Mais tempo ficaria, se uma voz
Não se fizesse ouvir, advertindo-me:
"És tu mesma que vês, linda criatura."
Paraíso Perdido, Livro IV
John Milton
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